Na minha penúltima lembrança ligada aos 25 anos da World Wine fiz um esforço de memória e recuperei estas décadas de encontros com o casal de amigos Monica e Phillipe Pacalet. Já escrevi sobre isto, mas achei que uma recompilação valeria a pena.
Foi por ter acordado tarde que conheci Philippe Pacalet, um nome que já habitava meu imaginário como uma lenda. Meu ritmo sempre foi devagar, nunca acordo cedo. Naquela manhã, entre o sono e a vigília, atendi um telefonema que quase recusei por impulso: "Almoçar com alguém da Borgonha? Daqui uma hora? Não, obrigado". Mas quando o nome Pacalet ecoou no ar, meus olhos se abriram. De imediato, aceitei o convite. Sempre os convites preciosos de Celso La Pastina.
Levantei de um salto, tomei um café duplo com gelo — meu truque para ligar a cabeça —, e com a camisa de pijama [truque que adoro, um lenço no pescoço, um pijama bem cortado e um blazer por cima, costuma passar despercebido] corri para o D.O.M., onde me esperava uma degustação de borgonhas. Não era o café da manhã dos meus sonhos, mas o vinho compensava qualquer sacrifício. E assim, o mito Pacalet, que até então só existia no meu imaginário, tornou-se real. Hoje, já o chamo de Philippe.
Nosso primeiro encontro foi traduzido por Monica, sua mulher, mas com o tempo, ele aprendeu um bom português, e eu me soltei o meu francês. Nossas conversas se tornaram rituais, com garrafas de vinho abertas e caminhadas pelas apelações da Borgonha, enquanto ele narrava as condições de cada safra — "muito calor naquele ano" ou "houve geada aqui". Eu nunca tomei notas, preferia deixar que esses momentos fossem apenas para beber, comer e celebrar.
Philippe tem a aparência de um querubim, sempre sorridente e de ar bonachão. Mas por trás dessa figura amável, há um radical, alguém que fala com precisão cirúrgica sobre o que acredita, sem exclamações, sem interrogações. Quando o questiono sobre algo, sei que suas respostas virão mais como uma chave para o entendimento do que como explicações. É como o vinho, que você precisa decifrar por si mesmo.
[Philippe na Grande Muralha, foto do seu intagram @philippe.pacalet]
Certa vez, em Beaune, na casa deles, ele me levou para ver os vinhedos. O céu nublado o preocupava, mas ele tocava as videiras, examinava as pedras no chão, sempre atento. “Não vai chover”, decidiu, e voltamos para a mesa, onde Monica já preparava um majestoso *poulet de Bresse* com perfeição. A cena parecia saída de uma vida simples, ritmada pela natureza. Enquanto o jantar tomava forma, mostrou fotos nas paredes, os antepassados, a sua raiz naquele lugar, mesmo dando a volta ao mundo com suas garrafas. Um inquieto tranquilo.
Philippe é um pensador, embora ele mesmo deteste ser chamado assim. Cita clássicos franceses para explicar aromas e fala de geosmina, o cheiro da terra molhada. Em nosso último encontro, em Paris, ele comentou sobre os chás oolongs de Taiwan, fazendo uma ponte improvável entre vinho e chá, coisas bem pacaletianas, estas pontes.
E enquanto falavamos de vinhos, terroir e safra, ele lembrou: “Há muita preocupação com terroir na Borgonha, é preciso pensar nas safras. Acho os 2007 parecidos com os Barolos. Prove às cegas e veja. ‘Floral?’ Estudei com Jules Chauvet, grande especialista em leveduras. Ousei falar um ‘aroma de rosa’. Ele me levou ao jardim, onde cultiva dezenas de espécies e disse: ‘Mas qual rosa?’ Cocei a cabeça. Aprendi que as coisas são complexas".
Em um dezembro, nos encontramos em Paris, na Légrand Filles et Fils. Monica escolheu um Pouilly-Fuissé de Robert Denogent, e falamos de tudo, das luzes de Natal, dos restaurantes, do campo. "Gosto muito de Paris, chego animado, mas depois de dois dias já quero voltar para minhas uvas", disse Philippe, com um sorriso. Ele não guarda estoques de seus vinhos e estava curioso para revisitar algumas garrafas que recomprou. Algumas vezes, em outros anos, almocei só com Monica, pois Philippe não se tentara pela ida a Paris. Mas encontrá-los anualmente virou parte do calendário.
Monica me fez rir com a história de que há dois fã-clubes de Pacalet em Tóquio, onde ele é venerado. Uma vem, entraram no elevador do hotel e logo foram reconhecidos. “Pacalet! Fotos, fotos!”. Ele sorriu sem graça e mudou de assunto.
Na visita à adega, tirava amostras das barricas para mostrar mais vinhos. Sem falar, bebíamos em silêncio. Perguntei o necessário. Sei que, quando ele se enfastia com jornalistas aborrecidos, começa a responder qualquer coisa, aleatoriamente. Tive medo de despertar esse lado com minha nerdice. É muito engraçado, desde que você não seja a vítima, ver que ele está falando coisas vagas para se livrar dos aborrecidos.
Nas suas visitas ao Brasil (vem a cada dois anos), fico dividido entre analisar os vinhos e escutá-lo. Uma vez o tema foi seu tio, que morrera pouco antes, o mítico Marcel Lapierre, grande vinicultor que salvou a Gamay da fama de medíocre e colocou seu Morgon como um líquido de desejo mundo afora. ‘Uma vez, no Guy Savoy, em Paris, pedimos um Morgon. O sommelier respondeu com empáfia: “Não trabalho com a pequena Borgonha”. Lapierre levantou da mesa e correu atrás dele, como num desenho animado. Foi preciso segurá-lo.’”
Philippe continua rindo ao relembrar a cena, mas o melhor ainda estava por vir: “No Noma, que ainda não era o melhor restaurante do mundo, daquela lista notória, comíamos o menu degustação e, quando o tinto foi servido, veio um prato com uma beterraba. Ele não teve dúvida: jogou o tubérculo no chão, pois ia estragar o vinho. Fomos expulsos”, conta, deliciado.
Ultimamente, seus interesses no Brasil estão em expansão: “No momento, são as jabuticabas — ‘comi no pé, que árvore curiosa!’ — e o português, que ele está empenhado em dominar: ‘Da próxima vez, conversaremos no seu idioma’, afirma convicto.”
Conversando, ele me contou sobre sua experiência em um mosteiro de Taiwan. O monge que o acolheu pediu que meditasse contemplando a montanha e desapareceu. As horas passaram, a inquietude cresceu, mas, no final, o monge voltou, rindo, disse: "foi dificil, nāo? Vamos tomar uma cerveja". E assim, Pacalet me ensinou, uma vez mais, a arte de contemplar, de esperar, de absorver o que a natureza oferece no tempo dela.
Nunca vou dominar completamente o universo da Borgonha. Mas, com o privilégio destes amigos, aprendo à cada visita a meditar sobre o vinho e sobre a vida. Como meu monge pessoal, ele me guia, e juntos, depois de cada lição, abrimos uma garrafa. E, de repente, tudo faz sentido.
Que maravilha, luiz! Esses vinhos também estão apenas no meu imaginário e eu adorei me imaginar provando-os pela primeira vez. E esse seu texto me fez pensar nas definições de ioga do carrère. Afinal, (quase) tudo pode ser meditação, especialmente quando temos um guru
Como escreve bem esse Luiz Horta, tão bem que viajei junto. Vi todas as cenas da maneira q meu cérebro mandou ! Texto ótimo, histórias que faz querer estar junto. Bj enorme Sherlock! Amei !