Há meses de coincidências felizes, em duas semanas tive a oportunidade de me encontrar e provar os vinhos de dois Marcelos, Retamal e Papa, ambos chilenos que produzem maravilhosos vinhos no mesmo lugar, a Quebrada Seca, no Valle de Limarí, norte do Chile.
Retamal veio primeiro, visitou São Paulo cerca de dez dias antes, conduziu uma degustaçāo de sete vinhos, 3 de seu projeto Alcohuaz, no Valle de Elqui, já velho conhecido nosso desde seu início, , em que as uvas Syrah, Garnacha, Cariñena e outras, sāo o foco. O que me impressionou foi como, nestes anos todos, os vinhos ganharam sutileza, frescor, bebibilidade; estāo muito gostosos de consumir, acompanham bem pratos de carne assada, queijos e até alguns peixes gordurosos (penso nos de rio). Syrahs de clima frio vindos de um lugar quente, que paradoxo!
[Marcelo Retamal em Alcohuaz, foto do instagram dele]
Depois mostrou seu projeto no Valle de Limarí, Quebrada Seca. Este nome é muito divertido, Retamal traduziu como Dry Creek, que me fez lembrar da velha história em quadrinhos L’il Abner, que aqui se chamou Ferdinando, nos tempos em que HQ eram uma arte, desenhada por māos humanas, no caso por Al Capp, e nāo estas coisas ultra coloridas e movimentadas, feitas por inteligência artificial, que me provocam (mesmo, eu olho e já começa a doer a cabeça) enxaquecas. A vila onde os personagens de Ferdinando viviam se chamava Dogpatch e aqui foi traduzido por “Brejo Seco”. Tergiverso.
Os vinhos Reta foram 3 Pinot Noirs e um Chardonnay. Todos muito bons, elegantes, equilibrados, algo que só na semana seguinte Marcelo Papa me explicou na “aula” particular que me deu no lobby do hotel Fasano: a influência maravilhosa da brisa fria do Pacífico sobre aquelas terras áridas, vento que sopra entre um vāo da Cordilheira da Costa, o frio que se esgueira até os vinhedos, mantendo a perfeita variação térmica que faz as uvas tão felizes, além da altitude.
No fim da degustaçāo, dos sete ótimos vinhos de Retamal, para mim, o Chardonnay se destacou muito. É elétrico, vivaz, longo, tem tensāo e acidez que o fazem um imenso destaque. Provem, se puderem, importado pela Decanter. E Retamal falou: “nāo é fácil produzir lá, só duas pessoas fazem Chardonnays de Quebrada Seca, o Amélia de Marcelo Papa e meu Reta”. Meus olhos brilharam, daí dez dias eu tinha um entrevista com Papa! Que ótima chance. Os dois Chardonnays foram destaque no Guia Descorchados 2024 na lista de 10 melhores do Chile.
Marcelo Papa foi eleito enólogo do ano no Descorchados 2024. Com sua simpatia habitual riu quando contei da visita recente de Retamal. “Degustamos muito juntos lá em Limarí, somos amigos”. Eu ia só bater papo com ele, meia hora, mas como ele estava vindo de um almoço, tinha uma mochila com uma série de garrafas abertas (abusei, acabamos ficando quase 2 horas conversando), me ofereceu provar os Amélia (ele hoje é o enólogo responsável pelas linhas mais importantes da Concha y Toro, embora se concentre e assine seu orgulho, os Amélia, Pinot Noir e Chardonnay, em…Quebrada Seca!).
[Marcelo Papa na “aula” que me deu sobre Quebrada Seca]
Nāo sei ver garrafas abertas sem provar, ele sempre animado tirou o computador da mochila, abriu para me mostrar a região e embarcamos numa excelente liçāo sobre tudo, vinhos, pluviometria (“uma colher de sopa de chuva por ano”), solos, safras, tudo aquilo que explica o tal “terroir”, e faz entender os vinhos. De novo, gostei muito dos Pinot Noirs, mas o Chardonnay Améla ganhou a tarde.
É igual e diferente do Reta, cada um tem sua autoria muito clara. O de Marcelo Papa é mais (que dificil achar a palavra…), burilado, tem uma sutileza mais focada, é mais harmônico no conjunto, ambos refletem bem as personalidades dos autores: o de Papa é mais refletido, sem perder as características do lugar, requer mais atençāo nas suas nuances, enquanto o Reta te abraça efusivo, o de Papa te envolve sem que que você perceba, vai te conquistando aos poucos. Vinhos nas mãos de dois grandes autores são como uma mesma paisagem: coloque dois aquarelistas diante de uma e terá duas versões diferentes do mesmo cenário.
Que lindeza um lugar assim, que permite dois esplendidos Chardonnays como estes e que alegria prová-los em tāo pouco espaço de tempo. Confesso que ganhei uma garrafa de cada, vou abri-los sem compará-los, sāo dois vinhos de imensa qualidade, feitos por dois amigos, no mesmo desafiador local deste país cuja história vinícola é um eterno recomeço, sempre surpreendendo. E são dois vinhos totalmente diferentes, coincidindo apenas na alta qualidade, na vibrante acidez, no grande prazer que proporcionam.
Marcelo Papa me recomendou um novo restaurante em Santiago, chamado La Calma, estou pensando dia sim e no outro também em comer lá, toda aquela riqueza marinha do Pacífico, com estes dois vinhos: que privilégio ter o Chile tāo perto. Quando se cruza a Cordilheira dos Andes (algo mesmerizante em si) se abre novo mundo gastronômico e enológico, é como atravessar um portal para outro mundo. Como mudar de continente. O Chile é um grande presente para nós.
[uma aula tão completa que foi quase uma pós-graduação]
Fiquei com vontade de tudo: do Chile, dos vinhos e dos mariscos do Pacífico ♥️ 🇨🇱
Atualmente, o Limari é o melhor lugar para Chardonnays no Chile, e o bacana é que, como tem muita experimentação rolando, talvez descubramos algum outro lugar (dedos cruzados!). Ah! E o La Calma é imperdível, um verdadeiro passeio pelo mar Chileno.