Quem escreve sobre vinhos, ao contrário do que parece, nāo tem muitos prazeres. É sempre uma ansiedade para provar o diferente, conhecer novas regiões, uvas estranhas (o Wine Grapes, o mais respeitado livro de variedades, na sua ediçāo de 2012, lista 1368 castas diferentes. Nāo estāo contadas uvas com nomes diferentes, sāo 1368 uvas distintas. A Tempranillo, por exemplo, tem cerca de 10 nomes na península ibérica, mas conta como um único verbete). Depois de duas décadas no assunto vai virando o preenchimento de um álbum de figurinhas, com um certo desespero, do qual procuro fugir para manter a chama do meu interesse acesa.
Tudo isso para dizer que raramente me convidam para uma festa. E foi o que, aleluia!, aconteceu na apresentaçāo da safra 2021 de Don Melchor, a 35ª safra do grande vinho. Foi um jantar, delicioso, sem conversa de solo, clima, estas nerdices dos especialistas. Era o verdadeiro sentido do vinho: um imenso deleite à mesa, com bons amigos e boa harmonizaçāo e muitas garrafas.
Enrique Tirado falou bonito, ele que participou de 28 das 35 safras, uma marca notável para um enólogo. Gostei especialmente quando fez soar no salāo a Suíte para Violoncelo Solo 1 de Bach e comparou a Cabernet Sauvignon que trabalha no vinhedo à música: variações em torno de um tema, como “Bach que com apenas um instrumento consegue tantos matizes”.
Sou fā de Cabernet Sauvignon, algo que soará dessueto, mas é a bela uva que me dá tantas alegrias nos vinhos que evoluem lindamente, como os Bordeaux da margem esquerda, em que predomina. Sou antigo e posso gostar do que quiser.
Duas vezes participei de um jogo muito pedagógico: tentar recriar o Don Melchor, recebendo garrafinhas com diferentes vinhos de parcelas do vinhedo. Uma vez fiz a brincadeira com Tirado dirigindo, para o suplemento Paladar, onde escrevia. Claro, fracassei enormemente. Na segunda vez foi lá na Concha y Toro, pouco antes da pandemia, desta vez com Marcelo Papa, meu “don melchor” ficou péssimo, exagerei numa parcela, equivoquei-me noutra e deu tudo errado.
Perguntei quantos blends fizeram antes de decidir pelo 2021, a resposta é de estonteantes 324 (se anotei bem, mas foram mais de trezentas composições até chegarem à definitiva). Daí o vinho ser tāo maravilhoso.
Foi o Don Melchor recente mais pronto para beber, os taninos sāo educados mas presentes, o vinho é sublime. Confesso que me surpreendi, pois tais vinhos ganham com o tempo na garrafa e assim, tāo jovens, costumam ter um lado indomado e agressivo. O Don Melchor 2021 nāo será diferente, com a passagem do tempo vai se mostrar mais, mas já é amigável e dá muita alegria.
No jantar bebemos também 1996, 2015 e com os queijos, no final, o apotéotico 1988, vivo, elegante, uma perfeiçāo. Pena que estas safras vieram da coleçāo da vinícola, comprá-las é complicado e caríssimo. Até onde sei a experiência de tentar refazer o vinho e visitar o vinhedo pode ser agendada, com poucas vagas de cada vez, lá em Maipo, no Chile. Foram servidas nesta ordem: 1996, 2015, 2021 e 1988.
Também bebemos algo que só é feito para consumo local, um Licor de Cabernet Sauvignon Don Melchor, apenas 810 garrafas de um fortificado.
Falta mencionar que Tirado (com uma equipe de sommeliers, com Manoel Beato e Ricardo Santinho na proa) abriu e testou cada garrafa antes de serem decantadas e servidas. E foram 40 garrafas de cada safra…
Há um eno-esnobismo atualmente, que considera vinhos como estes menos interessantes que o do Sr. Fuas, que tem um quintal com duas videiras de uma uva de nome sem vogais, numa viela perto de Bratislava. Claro que provarei, sem preconceito e sempre com minha sunny disposition, pronto para gostar, o vinho do Sr.Fuas, mas nāo preciso deixar de lado um tesouro como um Don Melchor bem evoluído na garrafa.
Viva a Cabernet Sauvignon e parabéns a Enrique Tirado, imagino o que será a comemoraçāo de sua 30ª safra…algo como as Variações Goldberg de Bach.
Quem quiser ouvir a suíte de Bach mencionada, é a em sol maior, BWV1007, há diversas versões no spotify. Algumas mais ligeiras, outras mais vigorosas, vāo de Pau Casals e Rostropovich a Paul Tortelier e Mischa Maisky. Tenho especial carinho auditivo pelas de Anner Bylsma e a de Yo-Yo-Ma.
Que belíssimo texto!
Delicioso texto, como sempre. 2021 é uma safra mágica no Chile, que o digam os melhores exemplares de Almaviva e Viñedo Chadwick até hoje produzidos. Ainda não provei o Don Melchor, mas pela sua descrição deve ser ótimo. Abraços,